4.1.05

Toda A Mente É Danada (5)

A enfermeira fechou a porta atrás de nós. O sol do fim da tarde fez-nos colocar novamente os óculos escuros.
- Então adeus, miss não-sei-quantos. – disse Vincent para a porta fechada.
- Miss porquê? – perguntei-lhe.
- Tinha cara de solteirona... Vamos fazer uma visita ao Banco Livveghart, ainda temos tempo. Onde foi mesmo que deixámos o carro?

O calor fazia-me sono e o engarrafamento não ajudava nada. Vincent esticava o pescoço, tentando perscrutar o que se passava lá à frente. Avançámos mais alguns metros e Vincent interrogou um polícia que dirigia o trânsito.
- O que é que se passa?
- Um doido que teve um ataque cardíaco quando conduzia. Amachucou dois ou três carros mas ainda bem que foi assim.
- Ainda bem!? – disse eu surpreendido.
- O sujeito levava explosivos com ele, assim pelo menos não matou mais ninguém.
Tinha a sua lógica, pensei, enquanto o automóvel avançava lentamente e o sono tentava tomar conta de mim.
Estava frio e escuro e eu estava só, num sítio desconhecido. Não conseguia ver e, no entanto, tinha uma imagem nítida da sala onde me encontrava. Havia máquinas por todo o lado mas não consegui distinguir pormenores porque tudo se tornou difuso, inconsistente, e uma névoa estranha que tudo invadia foi comendo a sala, comendo-me a mim...
- Que foi que...?
- Algum problema, Elder? Acho que adormeceste.
O carro do bombista estava do nosso lado direito, transformado numa amálgama de ferro para sucata. Tudo parecia estar bem, mas aquele sonho continuava na minha cabeça. Tivera um ligeiro sabor amargo a realidade e era isso que me perturbava...

- Achas que ele foi atacado, que a trombose foi provocada?
- Tudo é possível... – acho que Elder já estava com a mania da perseguição, via perigo em tudo o que mexia.
Os raios de sol varriam o passeio quase horizontalmente, na pequena alameda ajardinada que envolvia a sede do Banco Livveghart.
- Sabes que houve um tempo em que os bancos fechavam?
- Elder, histórias sobre dinheiro só sei as minhas, e são bem tristes.
O calor da rua foi substituído pelo ar fresco da climatização no interior do banco. Dirigimo-nos ao autómato que fiscalizava o acesso aos cofres de depósito de valores. Identificámo-nos e entrámos.
- Ainda bem que tens um cofre aqui.
- Não penses que está cheio, Vincent. Neste momento só me interessa este cofre. – exibiu-me a chave que Thomas Thornbee nos dera – 114732-KHJ.
Introduzi o código da chave na máquina de informações.
- Cave 13, corredor 4.
Nunca gostara de elevadores rápidos, assemelhavam-se demasiado a projécteis na velocidade e a caixões na forma. Andámos perdidos alguns momentos pelos corredores da cave 13, até que encontrámos o corredor correcto.
- É este!
- Ok, Vincent, dou-te a honra de seres tu a abri-lo.
Entregou-me a pequena chave, que penetrou sem ruído na fechadura electrónica. De imediato a gaveta do cofre deslocou-se majestosamente para fora do seu nicho. Agora só faltava abrir a tampa.
- Tem muitos papéis, óptimo, isso é promissor!
- Na verdade Elder, não vejo outra coisa senão papéis...
- Vêmo-los aqui?
- Sim, é mais seguro. Vamos para um gabinete de leitura. – retirei a gaveta dos encaixes e fechei a pequena porta.

- E então, o que é que achas?
Olhei para Vincent e encolhi os ombros.
- Só casos diversos, relatórios de investigações e processos sem qualquer relação.
- Não Vincent, deve existir uma relação qualquer. A coisa mais promissória parece ser a listagem de computador, provavelmente do JIM.
Aquela alcunha que o computador possuía tinha um longo passado de anedotas e trocadilhos originados nas iniciais do Administrador do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais. Histórias...
- Não sou nenhum perito, mas esses números parecem códigos de acesso a documentos confidenciais. Têm a mesma aparência dos que vi antes. Vamos tentar consultá-los, Elder?
- E este labirinto deixa-nos outra saída?
Tirámos cópias de todos os documentos na máquina reprodutora e saímos para o crepúsculo que reinava lá fora. Só no dia seguinte poderíamos consultar o JIM.

- Elder, como vai acabar tudo isto?
- Não sei, Phoebe.
- Vamos à polícia e contamos tudo.
- Phoebe, conheces o Centro Psiquiátrico de Sjodin? É lá que eles guardam os casos de loucos como nós, que contam histórias incríveis de assassínios impossíveis e se podem tornar perigosos de um momento para o outro.
Deu-me um beijo na testa e tornou a olhar as pinturas do tecto. Era incrível que estivéssemos naquela situação, ameaçados por um assassino, e que não pudéssemos fazer nada. Fechei os olhos e tentei adormecer. Elder estremeceu.
- Sinto-o em mim!
- O quê, Elder?
- Está a tentar confundir-nos. Não conseguiu descobrir ainda onde estamos, mas consegue provocar as transferências entre mim e Vincent.
- É Vincent que sentes em ti?
- Sim, uma parte. Está aqui e no seu corpo, não é como das outras vezes, é mais subtil. Sinto-me em dois sítios simultaneamente. É estranho Phoebe, pensei que só o deus da Última Igreja fosse ubíquo.
- O Vincent não te controla, é isso?
- Sim. Sabes Phoebe, as coisas não correram totalmente bem ao assassino, não era isto que ele queria que acontecesse... Ele tem cada vez menos controlo das transferências, estão a tornar-se autónomas. Pode provocá-las, mas não as pode controlar! O que era uma vantagem dele está a tornar-se uma vantagem nossa.
- É tudo tão estranho, Elder. Este mundo não é o meu!
- Há muito tempo que não vou a uma festa...
- O quê?!! Elder, que raio de interesse têm as tuas festas neste momento?
- Estava a falar com Vincent, não contigo.
O que é que se diz nestas alturas? Uma piada, um grito de horror ou devia ter deixado cair umas lágrimas ofendidas pela desatenção? Preferi não dizer nada e olhá-lo apenas, tentando esquecer que Vincent também ali estava.
- Tenho saudades das minhas festas...
Querido Elder... Pobre e querido Elder...

O edifício que albergava o sistema computacional e os serviços dependentes como a polícia e o governo era uma das poucas construções que tinham algo de original. Tinha sido desenhada e construída pelo próprio JIM, ou melhor, pelos seus apêndices mecânicos. Era triste que fosse um computador a fazer algo de original.
- Para que lado, Vincent?
- Vamos para uma sala de terminais. Podemos ir por aqui. – subimos para uma passadeira rolante que ocupava uma parte substancial do corredor e descemos dela alguns momentos depois.
- Vamos para esta. Tem terminais com teclado, eu não gosto de falar com máquinas.
A sala estava vazia: todos os terminais permaneciam abandonados e eram mais de vinte; os que falavam eram mais atraentes. Escolhemos um ao acaso e Vincent acedeu ao subsistema de informações.
- Vou pedir a consulta de documentos e introduzir os códigos. – Vincent atarefou-se durante alguns minutos introduzindo os códigos da pequena listagem de computador que trouxéramos do espólio de Walter Scherer.
- Merda! Era de esperar.
- O quê?
- O sistema deu todos os documentos como não existentes, apesar dos códigos terem sido considerados válidos.
- E o que é que isso significa?
- Significa que o assassino é mesmo uma pessoa influente. Identificaram-me pelo meu código de acesso ao sistema e negaram-me a consulta. Neste momento devem vir aí para nos liquidar...
- Do que estamos à espera? Vamos!
Deixámos a sala a correr perante alguns transeuntes espantados.
- Por aí não, Elder! Vamos apanhar um elevador expresso. – corremos na direcção oposta até chegarmos junto dos elevadores.
- Vamos, entra!
Antes de me deixar engolir pelo elegante ascensor de portas douradas reparei na pequena câmara que parecia olhar-nos. Possibilidades inquietantes ocuparam a minha mente e tomaram conta de mim.
- Vincent, o elevador vai a descer... Não íamos subir para o outro nível de saída?
- Não percebo, eu carreguei no botão para subir! – olhou para mim perplexo, sem saber o que estava a acontecer. Eu já tinha percebido... Não lhe disse nada, apenas apontei para a minúscula câmara num dos vértices superiores da caixa dourada. Finalmente o gato apanhara-nos.